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MATA-PENDURA

O próximo texto serviu de base a uma tentativa de esclarecimento para alguns defensores das montarias ditas de Mata-Pendura. Arrastou-se o tema fundamentando-se as opiniões no pressuposto que não se deve caçar se não se consumir a carne dos animais caçados - facto com o qual concordo plenamente - mas argumentando-se ao mesmo tempo, que tal como na caça menor o caçador teria de ter direito à carne dos animais abatidos.
Conhecendo todos nós as consequências deste tipo de montarias, nas quais para além das frequentes desavenças pessoais derivadas da posse do animal, se considera a possibilidade de todo o tipo de acidentes, bem como o desvario de se atirar (ou matar) tudo o que aparece ou mexe) foi preciso esclarecer muito novos monteiros e outros tantos supostos organizadores porque é que as coisas eram como se diziam e não como pretendiam fazer passar.

Tal como prometi aqui fica o esclarecimento sobre as “polémicas” do modo MATA-PENDURA e consequentemente da posse da carne das espécies de caça maior cobradas em Montaria.
O que a seguir lhes apresento não se trata de uma mera opinião pessoal mas sim da constatação de vários factos históricos e de situações que se prendem com a organização das montarias em si.
Para isso tenho que dividir o tema em duas partes: A questão das Montarias e a questão da posse da Carne.


Comecemos pelo primeiro:

As Montarias são um processo de caça maior característico e exclusivo da Península Ibérica ou melhor - e realmente – de Espanha. Em mais nenhum local deste planeta se conhece ou sequer ouviu falar daquilo que é realmente uma montaria como processo de Caça Maior.
E em Portugal idem aspas, ou seja os portugueses só conheceram este processo de caça nos finais do século XX, pelo que, apesar de sempre se ter caçado no nosso país, a caça só se praticava sobre a caça menor. Os portugueses que praticavam a caça sobre as espécies maiores faziam-no em Espanha, de acordo com as regras, tradições e códigos dos espanhóis. Porque em Portugal não havia espécies maiores – estiveram extintas durante décadas e décadas. Portanto ninguém sabia o que isso (Montarias) era…
Pessoalmente tenho o prazer e o privilégio de fazer parte da geração que lutou pela implementação e generalização do regime ordenado e consequentemente ter participado activa e directamente nos processos de reintrodução/repovoamento das espécies de caça maior, em Portugal durante os primórdios da década de 90.
E tanto eu como todos os restantes que o fizeram (ou que de alguma forma participaram neste processo) fomos aprender como se fazia – imaginem – com os espanhóis. Porque esses sabiam fazê-lo e tinham dado provas disso durante décadas. E esta questão acaba por arrastar, indirectamente, a questão da carne.
Vejamos:
Espanha, século XIX: milhares de hectares de terra inculta, uma organização social e politica deficiente, grandes índices de pobreza (e até fome). Duas formas de aproveitamento da carne de caça maior : em certas localidades (aldeias ou vilas) organizavam-se “quadrilhas” de caça constituídas por meia dúzia de caçadores e um número razoável de cães que por não terem qualquer outra actividade se dedicavam a caçar semanas e semanas a fio (por vezes com autorização de quem de direito, mas frequentemente sem autorização de ninguém) com o objectivo de satisfazerem as necessidades alimentares pessoais, e de terceiros (com a comercialização da carne remanescente). Ou eram organizadas pelos proprietários dos coutos apenas para convidados e amigos e nestas o proprietário dava à carne o destino que muito bem entendia (consumo próprio, oferta a familiares e amigos e, esporadicamente, a comercialização). Não há caça comercial.
Espanha, século XX : poucas diferenças do modelo anterior e as que se verificaram foram devidas ao progresso e natural evolução tecnológica dos tempos. Mas grandes diferenças no modelo organizativo da caça: o estado associa a posse da caça à posse da terra e criam-se os cotos privados de caça. Porque se percebeu a riqueza que o património cinegético representava e porque dadas as condições geográficas existentes, o estado cedo compreendeu que não conseguia controlar e gerir todo o território disponível para caça e então nada melhor que entregar o seu a seu dono e assim resolver um problema enorme.
Agora as montarias , são organizadas pelos próprios couteiros ou em quem estes delegam tal função (o célebre Capitão de Montaria) por reconheceram a esta ou aquela personalidade a competência e o saber necessário para tal efeito. E as montarias continuam a ser dadas apenas para convidados e amigos, bem como o destino da carne continua a ser o mesmo do século anterior. Continua a não haver caça comercial.
Partida para a montaria (1908, Serra Morena, Espanha)
Mas para além de tudo o que ficou descrito, perguntarão os caríssimos leitores deste texto: “ mas afinal o que é que se matava nessas montarias?”
Pois é contrariamente a tudo o que possam pensar atiravam a:
- Veados adultos (identificáveis pela qualidade do troféu – um veado de 14 pontas é seguramente o animal de 6/7 anos de idade)
- Javalis MACHOS adultos (identificáveis pelo seu porte, dimensão e reacção perante os cães ou caçador)
E a que é que NUNCA atiravam:
- Fêmeas de Veado, porque elas eram (são) as progenitoras e as que mantêm a existência das populações.
- Idem para as fêmeas de javali seguidas ou não de crias.
E como conseguiam tal identificação: porque atirando apenas e exclusivamente de caçadeira (a carabina foi proibida durante décadas por ser arma militar) tinham que deixar entrar os animais muito perto para conseguirem resultados e eficiência ( levavam-se alguns cartuchos no bolso porque eram raros, caros e obviamente difíceis de transportar , para quem se desloca a pé com tudo o que fazia falta para dias e dias no campo).
E nunca atiravam a fêmeas ? Apenas quando absolutamente necessário ou seja quando de dava um “agarre” dos cães – o que acontecia raramente - e não havia outra solução.

A fome e a necessidade podiam ser grandes, mas a necessidade de manter os recursos disponíveis no campo eram maiores porque os tempos eram incertos e não se sabia o que o futuro traria. Portanto era necessário consumir racionalmente e aquilo que não se podia transportar não se matava.
                                                                     O resultado de uma jornada de montaria (30/Nov/1881, Adújar, Espanha)

E foram estes os códigos de conduta que os espanhóis nos transmitiram e com os quais concordámos.

E foi tudo isto, para além dos processos de ordenamento e de gestão das diferentes espécies de caça Maior que aprendi (aprendemos) com os espanhóis. Porque não temos nem nunca tivemos um modelo próprio de organização de montarias.

E porque o utilizamos e praticamos, não sendo nosso ?
Porque se lhe reconhecem as virtudes e porque a história já mostrou que os espanhóis sempre tiveram caça maior em quantidade e qualidade, tendo ainda sabido preservar espécies que aqui em Portugal se extinguiram (p.e. a Cabra Ibérica, vulgo Macho Montês e Lobo, que ainda caçam apesar de tudo e o lince, para citar apenas alguns exemplos). Seguindo, é claro, este modelo.

É por isso que nas montarias não de deve atirar a fêmeas (sejam elas do que forem) nem a juvenis.

É por isso que a Caça Maior é uma caça de Troféu.

É por isso que o Monteiro que se preza, e que como tal se considera, não atira aos animais referidos e não por sofrer de “maleita dos troféus” ou desejar pôr mais um “par de cornos” ou de dentes na parede.

Concluindo: quem monteia a sério (sim porque actualmente monteia-se muito a brincar. Infelizmente.) sabe a dificuldade que se apresenta em um animal adulto e experiente entrar aos postos, numa montaria. E conhecendo esta, o lance tem tanto mais valor do que disparar sobre dezenas de cervas ou javalinas atiradas de forma patética porque a sua maior preocupação é, em função da protecção da sua prole, abandonarem o local e nem se aperceberem qual foi o caçador que lhes varou o coração. ( já repararam que as fêmeas – dumas e doutras – vêm sempre acompanhadas da descendência????
Matilheiros e matilhas (1908, Serra Morena, Espanha)
Deixando agora de lado a questão das Montarias (já tratadas em anterior texto, no qual se explica porque é a Caça maior uma Caça de Troféu e não de carne) e apelando a alguns exemplos apresentados num tema paralelo deste fórum onde se referiam os casos de outros países, tenho igualmente que apresentar algumas considerações.

O consumo da carne de caça maior associado ao acto cinegético é acima de tudo uma questão de tradição e uma questão cultural.

De tradição porque há países nos quais as populações sempre deram valor ao consumo da carne dos grandes animais e assim foram habituados em termos alimentares de geração em geração.
Cultural porque cada cultura tem os seus hábitos específicos, os quais, de alguma forma se ligam igualmente à tradição (os orientais comem cães, gatos, ratos e toda a espécie de insectos, facto que os ocidentais repudiam e justificam com a cultura do oriente).


E o consumo da carne de caça maior em Portugal, não se prende nem com a tradição, (porque o facto é ainda muito recente) nem sequer é cultural (há trinta anos atrás 98% da população portuguesa não conhecia sequer o aspecto da carne de javali, quanto mais da do veado).
Argumentou-se que se optava por consumir esta carne para evitar a questão comercial, porque era melhor que deixá-la no campo para abutres comerem, porque se não se comesse não se devia caçar etc, etc, etc.

Adiante.
Deixando de lado as filosofias, analisemos os que se passa por esse Mundo Cinegético além, usando para isso quer o conhecimento pessoal directo, ou relatos entidades fidedignas. É contudo preciso salientar que os exemplos servem apenas para caça maior de aproximação (com ou sem cães) e eventualmente de batida para pequenos grupos. AS MONTARIAS NÃO EXISTEM POR ESSE MUNDO FORA. Só na Península Ibérica.

Europa de Norte: Suécia, Finlândia, Dinamarca e Noruega. Já lá cacei em três momentos distintos a corços (espera e aproximação) e a alces (aproximação com cães e batida de três armas com quatro batedores).
Estes países têm grande tradição do consumo de carne de caça maior, pela tradição e pela questão cultural. Devido á climatologia da região e aos longos meses de isolamento por causa da neve as gentes habituaram-se a ter uma geleira bem apetrechada para os meses de Inverno. Aliás estes países só são considerados ricos há cerca de 40 anos, porque até então apresentavam também elevados índices de pobreza, pelo que a carne de caça era um recurso alimentar fácil e barato. Hoje é ao contrário. Caçando aos corsos numa propriedade privada do Sul da Suécia, a entidade gestora vendia as carcaças de caça directamente ao consumidor (qual fiscalização veterinária?) de forma legal. Dois dias antes da abertura as encomendas superavam as perspectivas de abate. Valor da carcaça para consumo local (em moeda antiga) 3 000$ /Kg. Valor da taxa de abate por animal caçado independentemente do troféu: 12 000$. Caça comercial e carne Comercial. Eu e o meu companheiro de caça, querendo provar a fabulosa carne dos corços tivemos, para além, do pagamento de taxa de abate, que comprar uma carcaça de um dos corços caçados, a qual as nossa esposas cozinharam o melhor possível com as indicações culinárias (?) do gestor da zona.
Sobre a caça aos alces, aproveitaram a minha presença na Suécia, para, conjuntamente com o dono da propriedade e o gestor da caça, se organizar uma batida de três postos na tentativa de cobrar para carne, dois alces assinalados na zona, Como as batidas foram infrutíferas, caçámos dois dias de aproximação com um cão especialista que apenas deu com uma fêmea de alce, a qual não se atirou, prendendo-se o cão e voltando para trás. Por muito desejada que fosse a carne a arca ficou, desta feita, vazia. (Sem mais comentários)
O mesmo se passa nos outros países referidos Noruega e Finlândia. Na Dinamarca, convidado por um amigo proprietário e agricultor local, que tinha vendido a caça a um outro organizador local, fui igualmente caçar corços. Quando reunimos para acertar os custos da caçada fui esclarecido pelo dito organizador que não pagaria abates, porque necessitava de 23 carcaças para satisfazer as encomendas que tinha e não dispunha de tempo para as cobrar todas, logo qualquer ajuda era bem vinda. Caça meio comercial Carne Comercial.

Inglaterra e Escócia: basta consultar qualquer local da Internet sobre caça de cervídeos. Caça Comercial, Carne Comercial.
 
Europa Central e de Leste: idem, idem, aspas, aspas.

Mudemos de Continente:
América do Norte (Canadá e USA), América Central e do Sul: duas modalidades de caça. Ou o próprio vive na região e adquire para além da licença de caça as licenças individuais para cada espécie limitadas a um, dois ou eventualmente três animais (dependendo da espécie ou da região); vai sozinho ou com mais um ou dois caçadores, caça de aproximação, cobra, marca e trás para casa. Preços da licença de abate, o equivalente custo da caça mais o valor do animal em termos da sua reposição na natureza; fica mais barato comprar carne no supermercado.
Ou caça guiada onde se contrata o guia residente na região por x dias, se caça, se cobra ou não o animal e em caso afirmativo trás para casa o troféu. A carne é pertença do guia (ou organizador, não será?) que a pode ou não vender e ao preço que bem lhe apetecer. Caça Comercial, carne comercial no primeiro e no segundo caso.

Deixo deliberadamente de fora a questão do continente Africano por, apesar da longa presença portuguesa, se tratar de uma realidade de caça completamente diferente. Processos de caça de aproximação e batidas (frequentemente através do fogo). Ordenamento nenhum. Controle efectivo raríssimo para não dizer inexistente. Limites de caça ou de espécies nenhum. E veja-se a realidade a que chegaram, com este modelo, muitas espécies e muitas regiões de África. Não pode nem deve servir para exemplo do que se pretende.

Assim sendo e depois de todo este arrazoado acabamos por verificar que a carne da caça maior por quase todos esse mundo além, é propriedade do dono da caça, seja este o dono da terra, o organizador ou o gestor cinegético.

Nunca por nunca ser a carne da Caça Maior, foi propriedade do caçador que cobrou o animal em acto de caça. Pode sim ter acesso a ela mediante um pagamento extra. Porque, e voltando á velha questão, em todo o Mundo a caça é propriedade do dono da Terra e não de quem dela se apropria.

Por tudo isto, em Portugal, seja de Montaria seja através de qualquer outro processo, a carne da caça maior não poderá nunca pertencer ao caçador excepto nas circunstâncias referidas ou por qualquer outra excepção, Contudo se o dono a quiser oferecer esse será seguramente outro assunto.

Confundir caça menor, onde não faz sentido (porque são coisas muitos diferentes), o caçador não se apropriar da carcaça do animal, com a caça maior é querer justificar o injustificável.

É por isso que a Caça Maior não é (nem nunca foi) uma Caça de Carne.

É igualmente por isso e pelo que ficou descrito no texto sobre as Montarias, que em Portugal ou em qualquer outro lugar, não pode haver Montarias de MATA- PENDURA.


Se por outro lado me disserem que em Portugal, não havendo tradição, não sendo uma questão cultural, que não havendo regras próprias mas sim copiadas de terceiros deveremos fazer o nosso próprio código de conduta para caça maior, então sim senhor que se faça, mas que se tenha em atenção os exemplos das boas práticas (como está na moda dizer), para que não caiamos no ridículo e no caminho da destruição total para satisfazer egos.

E quem não concordar, então que abandone o barco, porque seguramente não tem o direito de criticar todos aqueles que muito se têm dedicado ao desenvolvimento da caça maior nacional, sem o trabalho dos quais hoje não seria possível fazer as tais montarias de Mata-Pendura.
Se estes não sabem nada, e os novos “monteiros” que se acham cheios de direitos, já sabem tudo (certo é que ainda não aprenderam com a geração que lhes proporcionou o que agora podem desfrutar) então estamos muito
mal encaminhados em termos de futuro.

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