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MONTARIAS, GANCHOS E OUTRAS SIMULAÇÕES

é um texto recentemente publicado na Revista Caça Maior e Safaris que mais não pretende do que voltar a salientar a importância da Montaria Tradicional e das mais elementares regras do código de conduta da Montaria. Num momento de grande desorientação organizacional ao nível da Caça Maior portuguesa o assunto pareceu-me da maior importância já que se trata de alertar para um conjunto de desmandos e desvarios a que vimos assistindo ao longo dos últimos anos.


"Quando comecei a montear, há mais ou menos 30 anos atrás, as montarias eram uma novidade e um grande acontecimento local. Vinham gentes de todos os lados, caçadores curiosos principalmente, para ver as armas que  os participantes utilizavam e que muitos julgavam não serem permitidas. Mas vinham principalmente para ver o “porco bravo” que tanto dano fazia nas culturas e por vezes também nas gentes.
Nessa época, primórdios da década de 80 do século passado, as montarias eram organizadas pelas Juntas de Freguesia, sendo estas coadjuvadas pelos serviços regionais de Caça, sedeados em cada capital de distrito; ou melhor: as autarquias locais queixavam-se da presença dos javalis e dos seus estragos nas culturas e os serviços regionais, através dos seus técnicos, faziam o levantamento da região, procurando não só os estragos reais provocados pela espécie, como também as possíveis manchas de encames dos animais. Tratava-se de um trabalho prolongado de estudo e observação que durava meses até que os técnicos dos serviços, verdadeiros práticos de campo, considerassem não só a necessidade como igualmente a possibilidade de se fazer uma montaria.
Era pois natural que apenas se desse caça ao javali quando os efectivos eram comprovadamente muitos e assim sendo, para garantir o sucesso do jornada, era normal as manchas terem dimensões maiores que aquelas a que hoje estamos habituados. Caçavam-se manchas com 750, 800 e por vezes mais hectares, sendo estas armadas com um número proporcional de postos. No entanto não tenho ideia, pelo menos daquelas em que então participei, que estas levassem mais de 80 postos.
E estes 80 postos estavam criteriosamente marcados quer em termos de visibilidade,  quer de qualidade de tiro quer ainda de segurança das pessoas. Era normal, em terreno mais ou menos plano, os postos não se avistarem uns aos outros e nem sequer conseguirem comunicar gritando. Quantas vezes se gritava para o companheiro do lado “ Aí vai ele…” e o bicho lá se escapava sem que o avisado tivesse percebido o aviso.
Quando o declive dos terrenos era mais pronunciado e o coberto vegetal mais denso e alto, preparavam-se as manchas, no verão, utilizando para o efeito máquinas de rasto que a autarquia disponibilizava e “dava-se um jeito” no mato, fosse para facilitar a entrada dos postos para as travessas, fosse para criar campo de tiro.
Lembro-me que numa dessas montarias, em Penha Garcia, o posto que me coube em sorteio, numa das travessas, se situava num caminho de três metros de largura na encosta da serra. E, consciente da dificuldade de se atirar naquele local, alguém tinha tido o bom senso de mandar passar uma máquina de rasto do lado superior do caminho, partindo o mato e criando um alargamento do campo de tiro para mais 10 metros.
E nessas montarias era normal cobrarem-se 50, 60 e mais javalis sendo que a presença dos navalheiros no quadro de caça, já nessa época era escassa. Não por não os haver, mas por facilmente iludirem as matilhas e os monteiros.
De acordo com alguns dados que fui recolhendo ao longo desses anos, essas montarias tiveram quase sempre um resultado médio igual ou superior a 0,8 javalis por posto.
E como tal poucos eram os que no fim da montaria vinham de semblante mais carregado. Quando isso acontecia e os questionávamos sobre a forma como tinha decorrido a “sua” montaria respondiam-nos que tinham sido o único posto da sua armada que não tinha atirado ou então que tinham errado um ( ou mais) porcos.
Numa época de caça organizava-se uma dezena ou duas de montarias em todo o país e o facto da mancha ter sido caçada esse ano não era garantia para que, no ano seguinte, se voltasse a fazer. Isso dependeria como as “coisas” estivessem no ano seguinte.
E ouve manchas que passaram a dar-se todos os anos, constituindo imagens da qualidade venatória daquele concelho, outras houve que apenas esporadicamente se monteavam e outras ainda deram-se uma vez para não mais serem repetidas.
E desta época apenas nos restam as memórias.
Mas foi com estas memórias, com estas gentes e com estes práticos de campo de aprendemos o que era uma montaria; quando se poderia fazer, como se deveria armar para garantir postos de caça com o mínimo de qualidade, como se deveria caçar para fazer com que os javalis entrassem aos postos, e com quantas matilhas se deveria caçar.
Aprendemos igualmente que cada mancha é um caso; que cada mancha tem uma dinâmica própria; que cada mancha só suporta um certo número de postos; e que uma mancha num ano evidencia umas características e no ano seguinte, porque a climatologia é diferente ou porque houve alterações no seu coberto vegetal, evidenciará outras completamente diferentes.
Aprendemos que era preciso ir, andar e estar no campo muitas, muitas horas, para reduzir todo o sucesso deste tão nobre acto a uma jornada de caça.
Mais tarde e no final desta década de 80, já o assunto se tinha especializado. E, com a criação das primeiras Zonas de Caça Nacionais, fortemente vocacionadas para a protecção e exploração da caça maior, começaram a organizar-se, nestas, os primeiros ganchos aos javalis.
E agora sim, era a cereja em cima do bolo, ou seja, o máximo da especialização. Tratava-se de organizar uma montaria em “miniatura”, escolhendo com o máximo critério uma mancha com área de 150 ou 200 ha (de entre uma total continuo de 5 000, 6000 ou mais) , marcá-la com apenas 24 postos e utilizando um número mais reduzido ainda de matilhas, cobrar 30 ou mais javalis (por vezes com mais de 200 tiros feitos).

Estas eram as verdadeiras Montarias! Estes eram os verdadeiros Ganchos!
 
Depois os tempos evoluíram, entrou-se em novo milénio e as montarias da nossa memória, que foram organizadas em terreno livre (não ordenado), passaram a ser um processo de caça vulgar, agora sob a égide do regime ordenado.
E, assimilando o exemplo das Zonas de Caça Turísticas, os restantes modelos de ordenamento passaram a ver na montaria uma inesgotável fonte de receita.
 E disparou o número de realizações.
De acordo com um levantamento feito através da publicidade nas revistas da especialidade, durante a época venatória de 2007/2008, conseguimos contar uma média de 16 a 20 “montarias” por dia de caça, encontrando um ou outro fim de semana onde as montarias anunciadas atingiram a média de 4 dezenas, tendo chegado ao número disparatado de 78 num único dia.
E 90% destas eram realizadas acima do Rio Tejo maioritariamente em Zonas de Caça Municipais.
Estes factos, à primeira vista, poderiam (deveriam) permitir tirar como conclusões que existia uma grande proliferação de javalis (e eventualmente veados) nestas regiões do país, e que assim sendo era necessário controlar este expansionismo inusitado das espécies. Por outro lado, deveria revelar-nos a grande capacidade organizativa dos nossos presidentes de clubes e de associações de caçadores e bem assim a existência de uma grande procura para este nobre acto de caça.
Mas a realidade apresentou-nos conclusões completamente diferentes: montarias obtendo resultados nulos ou no mínimo medíocres, manchas sobrecarregadas de postos pondo em causa a segurança de pessoas e bens, desorganização completa na colocação e recolhas das armadas, generalização do conceito de Mata Pendura, postos dobrados e redobrados onde chegam a estar 4 armas fazendo fogo em todas as direcções, a repetição de manchas uma e duas vezes no mesmo ano, o abate generalizado de fêmeas e crias, o incumprimento geral das mais elementares regras impostas pelo Regulamento da Caça, para citar apenas algumas das tristes realidades a que tenho vindo a assistir ao longo dos últimos anos.
No entanto estes factos não significam que todos se comportam da mesma forma. Felizmente há clubes, associações e organizações de caça que praticam modelos de gestão e fruição racional dos recursos e conseguem assim equilibrar o outro prato da balança.
 
A realidade mostrou-nos também que estas realizações não passam de fracas simulações do que é a Montaria, dando uma imagem grotesca e desfocada daquilo que a caça maior representa para o caçador, para Natureza e para o Homem. Perdeu-se a sensibilidade pelas coisas belas da Natureza, perdeu-se o respeito por tudo o que nos rodeia e até por aqueles que connosco compartem as jornadas de caça, privilegiando o egoísmo e a ganância. Por outro lado muitas organizações reduziram o acto da montaria a um simples factor económico que todos aprenderam a usar para suportar despesas extra, melhorar a tesouraria ou simplesmente engordar alguns gestores.
 
Para muitos esta é evolução natural dos tempos e da Caça. Esta será (é?) a caça do século XXI. E quando falamos em tradição, ética e códigos de conduta para a forma de estar na Caça e nas Montarias, dizem-nos que essa é a “nossa” realidade e não aquela que impera no panorama cinegético nacional.
Dizem-nos que estamos ultrapassados e que não temos coragem para evoluir e acompanhar os tempos esquecendo que, com esta realidade, muito brevemente não existirá caça, nem caçador, nem sequer condições para se caçar, seja pela imposição de normas de controle duras e restritivas seja pela simples extinção das espécies.
Resta-nos pedir a St. Huberto, o velho patrono dos caçadores, que nos ilumine e nos facilite a vontade de melhorar todo um futuro que se mostra pouco risonho.
(Publicado na revista Caça Maior e Safaris, nº 18, em Maio de 2010 .)

Texto do autor do domínio. Imagem Caça maior e Safaris.





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